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Médico plantonista do SAMU, morador da Santa Cruz desabafa:

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Plantões intensos e uma rotina de extremo desgaste. Assim vem sendo a rotina dos profissionais de saúde da linha de frente de combate ao Covid-19. Desde março de 2020, quando foi iniciada a pandemia em Salvador, diversos desses profissionais enfrentaram quando não o própria Covid, doenças relacionadas ao esgotamento físico e mental. Esse é caso do médico Vinicius Andreas de Jesus, 32 anos, que atualmente trabalha no Samu 192, além de duas UTIs cirúrgicas em dois grandes hospitais de Salvador.


Vinicius se formou na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) há dois anos. Antes disso chegou a cursar Engenheira Civil, Ciências Biológicas e Enfermagem. Entretanto, foi através de um trabalho voluntário no Grupo de Assistência à Criança com Câncer (GAAC), que o jovem começou a perceber a sua capacidade de ouvir, entender a dor do outro e procurar tentar amenizar o sofrimento alheio. Em 2013, entrou na Faculdade de Medicina e seguiu seu caminho. Mal sabia o jovem profissional que logo, logo sua vocação seria duramente testada.


E foi em março de 2020, após a Organização Mundial de Saúde decretar a pandemia, que Vinicius viu sua rotina de vida ser alterada de forma drástica. A vida social e o convívio com a família e o filho de apenas quatro anos foram substituídos pelo imenso vazio de um quarto escuro. Seu lazer, nos raríssimos momentos de folga, se restringia a assistir um filme ou série de TV.
“Tenho uma avó de 78 anos, tenho um filho de 4 anos e que acabei tendo muito pouco contato. Para ver meu filho tinha que ser à distância de pelo menos cinco metros. Teve uma vez que me marcou muito que foi quando ele agarrou no portão e começou a balançar pedindo para me dar um abraço. Me emociono só de lembrar…Tudo tem sido muito intenso e muito rápido. A sensação que eu tinha é que, a medida em que a pandemia ia passando era como se nós profissionais de saúde estivéssemos andando em um carro, com o pneu furado sem puder parar. A gente tentava trocar o pneu com o carro andando. Essa era a minha sensação”, conta o “doutor”.


De acordo com Andreas, nenhuma palavra melhor define a rotina dos profissionais de saúde durante a pandemia do que “intensa”: “Intensa em carga horária de trabalho, intensa e estresse, intensa em entrega dos profissionais no sentido de minimizar os danos causados por essa doença. Acredito que quem teve a oportunidade de trabalhar desde o começo, amadureceu e aprendeu muito, tanto do ponto de vista técnico, como humano e pessoal. Infelizmente, às custas de muitas vidas que acabaram sendo ceifadas. Não estamos lidando com uma coisa simples. Teve meses que cheguei a fazer 46 plantões! Vários colegas iam se afastados por estar positivando ou com problemas de ordem psíquica (depressão, transtorno de ansiedade…). Não é fácil ter que lidar com a morte o tempo inteiro. Você acordar sabendo que terá que preencher duas ou três declarações de óbito. Eu tive a oportunidade de trabalhar em quase todos os hospitais de campanha de Salvador: Instituo Couto Maia, Hospital Ernesto Simões, Arena Fonte Nova, Memorial Itaigara, dentre outros. Meu primeiro plantão de covid, inclusive, foi no dia do meu aniversário: dia 19 de março. Não esqueço disso.”


“Não esqueço da vez que acabei perdendo uma garota de 23 anos, por conta, provavelmente, de uma trombose pulmonar. Tentamos reanima-la por mais de 50 minutos… Ela era de uma cidade do interior, onde não tinha a possibilidade dos pais dela comparecerem ao hospital. Nunca tinha passado nenhuma notícia de morte pelo telefone….Talvez tenha sido o dia mais triste dentro da minha profissão”, relatou Vinicius.
Através de seu perfil oficial no Instagram e após uma jornada intensa de trabalho, o médico fez o seguinte emocionado desabafo:

“Como você foi de final de semana? Tudo bem? Tudo tranquilo? Infelizmente, para a gente não foi. Mais um final de semana onde a gente bateu recordes de casos de coronavírus. Ontem (21 de fevereiro), foi mais um dia extremamente puxado para todas as nossas unidades que estão nas ruas fazendo as ocorrências primárias e as transferências Covid-19. Ontem, para vocês terem uma ideia, em 24 horas, a gente não utilizou aquele nosso macacão tradicional, somente utilizamos aquela roupa que você vê pela rua e que parece de astronauta. Agora às 3h da manhã, fomos acionados para um caso de parada cardiorrespiratória de uma paciente confirmada de covid-19 e que acabou vindo a óbito. Infelizmente, não conseguimos trazê-la de volta. Aqui no Samu/Salvador, nós temos onze unidade avançadas e todas essas unidades fizeram várias transferências de covid. Batemos 80% da taxa de ocupação de leitos de UTI. Isso é um marcador onde conseguimos estimar a gravidade da quantidade de casos e de transmissão.

Não consegui descasar nada essa madrugada. Ficamos rodando praticamente o tempo inteiro, com aquela roupa calorenta e desconfortável, mas que é umas das nossas únicas formas de proteção individual. Vários outros colegas no decorrer da semana fizeram falas perfeitas sobre o que de fato está acontecendo, o que denota justamente isso que vocês estão vendo: a cara de uma pessoa cansada que não apenas não dormiu e não tem conseguido descansar de uma forma adequada há algumas semanas, mas de uma pessoa que esta trabalhando desde março do ano passado. Tive a oportunidade de trabalhar em quase todas as UTIs covid, dos hospitais de campanha que abriram por aqui em Salvador. Tudo isso que estou falando é para fazer um único apelo: seja lá no que vocês acreditem, fiquem em casa. Estamos extremamente cansados… Não aguentamos mais…Já tive varias feridas no rosto por conta de uso de máscara, já estou desenvolvendo alergia nas mãos por conta do pó das luvas…Nós profissionais de saúde estamos extremamente extenuados, esgotados… Só pedimos um pouco de empatia que é capacidade de você se colocar no lugar do outro.


Quando saímos para fazer ocorrências ainda podemos ver as pessoas aglomerando sem respeitar os decretos e as medidas de segurança. A praia da Barra está lotada, o Rio Vermelho continua cheia…Fomos comprar comida aqui em Narandiba e vimos as pessoas aglomerando para fazer bingo…Infelizmente, precisa acontecer algo de ruim com os familiares para que essas pessoas caiam na real. Acabei de vir de uma ocorrência, onde a paciente veio a óbito…O que chamou à atenção é que o esposo dela tinha que acabado de chegar de viagem e quando olhou a cena e viu o corpo da mulher dele que estava lá, morta, nos olhou e disse: “perdi o meu maior tesouro. Queria muito poder dar o último abraço e pedir desculpas pelas merdas que eu já fiz”. Essas foram as palavras dele, essa reflexão. Quantas e quantas pessoas a gente acabou perdendo cujo os familiares não tiveram a oportunidade de dar o último adeus e ver pela última vez? Imagine você que ainda não entendeu a magnitude disso que estamos vivendo? Imagine o que é você ter seu pai, sua mãe, seu filho, sua tia ou alguém que você ama muito, que você viu ele ontem e hoje você não vê mais porque ele morreu por conta da covid?

Eu como profissional médico tenho visto isso há quase um ano. Já perdi pacientes de todas as idades: idosos, jovens… Já perdi uma paciente de 16 anos que estava intubada com covid, onde não conseguíamos fazer ventilação mecânica para que ela conseguisse respirar. O pulmão dela estava tão inflamado que ela não aguentou. E aí cabe a mim, enquanto medico, dar essa notícia para uma mãe ou um pai. Eu também sou pai…Imagine só você chegar para uma pessoa e dizer: seu filho morreu. Infelizmente, tentamos fazer de tudo, mas ele não resistiu…”. Ponha mão na consciência pessoal. A única coisa que a gente pede, até de forma apelativa e repetitiva, é se cuidem, fiquem em casa, se protejam.

Agora, são exatamente 19h dia 22 de fevereiro de 2021. Finalizando agora 24h de plantão. Nunca vi de verdade o que pude testemunhar no dia de hoje” .

Tiago Queiroz
Tiago Queiroz
Graduado em Comunicação/Jornalismo, e exerce as funções de Editor e Coordenador de Jornalismo do Portal NORDESTeuSOU

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