spot_img

“Mãe, Mulher, Maestrina, Andréia, Olodum”

Published:

Há uns 2 anos fui ao Pelourinho ver um ensaio de rua do Olodum com minha “Olodúnica” preferida, Marilene. Sempre fui uma apaixonada e enlouquecida por percussão! Tentei aprender, mas minha coordenação motora nunca ajudou! Sou o tipo de gente que não bate palma em terreiro só porque acho que vou atrapalhar o som dos atabaques. Da mesma forma, quando algum artista para de cantar no meio do show e deixa só a percussão, viro estátua para “ouvir melhor”… rs. Enfim, voltando ao Pelô: a rua toda tomada pelos percussionistas! Lá estava Andréia Reis no comando. Foi uma das cenas mais incríveis que Salvador já me proporcionou assistir! Pra quem nasceu e foi criado aqui, é normal, né? Mas no meu caso, nasci no “lugar errado”… rs. Papai do céu deu uma piscada e acabei nascendo no Rio. Mas tudo bem, deu tudo certo. Cá estou eu há 8 anos.

            Nossa história de hoje começa lá no Taboão, bairro que faz parte do Centro Histórico do Pelourinho. Andréia ainda era uma criança que começava a se interessar por música batendo em latas: “A gente fazia uns palanques lá no prédio em que eu morava, era um “cacete armado”, rs… Ficava batucando nas latas, incomodando os vizinhos”. Um dia ela ouviu uma música do Olodum no rádio: “Foi amor à primeira vista, paixão mesmo por aquele batuque, por aquela percussão forte”.

Foto acervo pessoal de Andréia Reis.

            Seus pais nunca a deixaram ir para a rua, nem para os ensaios. Mas os meninos que batucavam com ela nas latas, já eram um pouco mais velhos e conseguiram ir ao ensaio do Olodum! Voltaram de lá M-A-R-A-V-I-L-H-A-D-O-S e com uma vontade absurda de fazer os instrumentos iguais! Resolveram fazer uma “banda de lata”: “A gente pegou latas de tinta, câmaras de pneus, botou plástico grosso na borda das latas… Ía esticando o plástico e botando as borrachas até tirar o som do jeito que a gente queria! Os meninos iam para o Olodum, ouviam os ritmos e traziam para a gente ensaiar num campinho de barro do nosso prédio mesmo. O campinho nós também construímos!”

            E aí, meus amigos… A gente não sabe se pode chamar de sorte ou destino! Vocês conseguem imaginar QUEM passou por lá um belo dia? NEGUINHO DO SAMBA! “Ele passou, ouviu o som, se interessou e convidou a gente para entrar no Olodum!”  Só que nem tudo foi um mar de rosas! Na época, o Olodum já tinha banda mirim, mas só os meninos podiam tocar. Andréia, sua irmã e algumas colegas ouviram do rapaz que fazia as inscrições: “Aqui não aceitamos meninas, não! Só os meninos!”. Eis que, novamente, surgiu NEGUINHO DO SAMBA e disse: “Pode inscrever as meninas, que eu estou autorizando! A partir de hoje, elas também vão fazer parte da banda!”        Como os meninos já estavam um pouco mais avançados, ele começou a ensaiar Andréia e as colegas separadamente. Eram os meninos que ficavam na frente da banda. Até que o Mestre decidiu que colocaria uma delas na frente. Andréia era a que se destacava mais: ”Eu era a mais avançada, a mais interessada… A mais ousada, na verdade! Sempre fui arisca! E ele me colocou na frente! Disse que, a partir daquele dia, quem comandaria a banda seria eu!”

            O ano era 1987. Tínhamos, finalmente, a 1ª MAESTRINA de um bloco afro em Salvador!

            Andréia conta que a maior conquista que ela teve com o Olodum foi tocar no Central Park, Nova Iorque, em 1991: “Acho que foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida de percussionista. Eu tinha 16 anos e fazer aquele show para mais de 700 mil pessoas com um artista renomado como Paul Simon foi uma responsabilidade muito grande! Tinham outras meninas já tocando na banda, outros meninos também. Mas Neguinho do Samba me escolheu!” Ela teve muita dificuldade, na época. Faltava grana, ainda era menor de idade, vários percalços! Neguinho do Samba segurou o passaporte dele até ela conseguir resolver tudo. Quando ela conseguiu ter o passaporte pronto, foi até o Mestre.  Ele, então, pediu que ela levasse os documentos de ambos até o Olodum! A viagem estaria garantida! Andreia reforça: “Foi o show mais importante na minha vida profissional”.

Foto: acervo pessoal de Andréia Reis.

            De todas as músicas do Olodum, suas preferidas são “Sinfonia dos Deuses” e “Onda Azul”.

            A gente sabe que a banda já passou por centenas de lugares. Achei que seria difícil para ela escolher UM que mais tenha gostado. Que nada! A resposta foi certeira: “O dia em que o Olodum voltar ao Japão… Se eu puder me escalar, eu me escalo! Me encantei com tudo lá!”

            Março, mês das mulheres. Seria inevitável não falar de preconceito. Junto com o encantamento que tive ao vê-la naquele ensaio de rua, a primeira questão que veio em minha mente foi: “O quanto de gente sem noção já deve ter feito e falado bobagens para ela!” Ouvi uma resposta doce e firme: “Preconceito sempre tem. A gente ainda ouve que “lugar de mulher é na cozinha”, mas o LUGAR DE MULHER É ONDE ELA QUISER E TIVER COMPETÊNCIA PARA ESTAR! Meu lugar é na percussão. Já sofri muitos preconceitos! Diziam que eu não ia aguentar tocar, que era feio mulher tocando… Essas coisas todas! Mas nunca abaixei minha cabeça. Entrei no Olodum com 12 anos e hoje tenho 45! Tem um ditado que diz: “Retroceder nunca e render-se jamais!”  Não me rendi, nem retrocedi em hora nenhuma! Era aquilo que eu queria pra mim e até hoje estou aqui!”

            Andréia já sofreu preconceito, desrespeito e até ameaça de agressão: “Já tive temperamento difícil, quis peitar muitas vezes. Mas fui aprendendo, me reinventando. Fui resistente e persistente. Quem me desrespeita, a gente leva para a produção e para a direção do Olodum  resolverem da melhor maneira possível. Hoje em dia eu tenho o respeito de todos eles porque conquistei isso!”

            Sobre a pandemia, a Maestrina fala com tristeza: “Acho horrível todo dia ver na TV o índice das mortes crescendo e as pessoas não se conscientizando. Meu trabalho também está me fazendo muita falta, só toquei nas lives, que é o que dá para fazer. Sinto muita falta do calor humano, do contato com o público, a gente se emociona tanto nos shows! Por outro lado, estou mais com minha família, com meus pais, que são idosos, com meu filho de 22 anos. Tem hora que estou triste, mas a gente mora perto um do outro, no mesmo bairro, aí me junto com meus sobrinhos, a gente inventa logo  uma comida, um lanche e vou me divertindo com eles.  Sempre fui muito família, amo meus sobrinhos de paixão! Mas se eu pudesse estalar o dedo e parar com as mortes, seria muito bom… Só que Deus não deu esse poder para a gente. Não frequento igrejas, minha religião é Jesus, é Deus, é Jeová! A gente precisa se conformar, mas tem que respeitar! Inclusive respeito todas as religiões, não tenho preconceito com nada! Acredito em Deus e nunca vou desfazer da religião de ninguém. Tem uma música do Olodum que fala que “cada um tem sua doutrina”, então vamos respeitar!

             Atualmente, Andréia mora no Beiru, em Tancredo Neves! Que orgulho para o bairro, hein, meu povo?! Que orgulho para nós, enquanto mulheres, termos Andréia Reis. Eu gosto de ouvir as histórias dos músicos, acho tudo fantástico! Mas ouvir a GIGANTE Andréia me emocionou muito! Ela merece o lugar que ocupa e merece todo o sucesso do mundo!Obrigada por você existir, Maestrina! Obrigada por tudo que contou para a gente!

Fayga Cabral
Fayga Cabral
Carioca, torcedora do Flamengo e do Bahia, vivendo em Salvador desde 2013. Analista de Redes em Mídias Sociais, Bacharela em Relações Internacionais. Depois que quarentou, resolveu ser estudante de História e de Letras. Ninguém é obrigado a ter um só caminho, uma só direção, uma só opinião.

Related articles

spot_img

Recent articles

spot_img