“Como professora ensinava a pessoas de todas as religiões. Se alguém dissesse que não ia tomar banca comigo porque eu era mãe-de-santo não tinha problema. Já chegou crente aqui para tomar banca, falando que já ouviu dizer que eu era uma boa professora, mas que não podia ficar por conta da religião. Eu dizia: “A religião da senhora é lá na igreja. O ensino sou eu que vou dar ao menino. Não vou dar meu candomblé ao menino, vou dar o ensino. Se a senhora quiser fique, se não quiser também não faço questão”. Essa é Carmelita de Castro da Silva, mais conhecida como Mãe Caboquinha. O apelido surgiu através da avó, que chamava uma de suas tias, também batizada de Carmelita, de “cabocolinha”. Sua mãe então abreviou para Caboquinha. E assim ficou.
Dona Caboquinha, apesar de nascida no bairro da Vasco da Gama, logo veio para o Nordeste de Amaralina. Sua avó materna, a mãe-de-santo Amália Maria de Castro, já residia na rua Marinho da Hora, na Santa Cruz. O Ilê Axé Raízes de Oyá Balé já funcionava ali. Seus pais, o funcionário público Lourisvaldo Borges da Silva e sua mãe, a empregada doméstica, e Elvira Castro da Silva fixaram residência no Nordeste, mais precisamente na rua João Pinheiro do Amaral, ali na descida da Ladeira da Praça, na primeira entrada à direita. “Minha avó foi quem construiu isso aqui. Era mato puro. Não tinha água, não tinha luz, era luz de candeeiro, mas ela batia o candomblé dela aqui mesmo. Isso aqui era tipo um interior. Se bebia água da fonte…”, lembra Carmelita. A infância foi dentro do terreiro, ao lado da avó. A futura ialorixá costuma dizer que já nasceu dentro da camarinha, no quarto do santo. Ainda criança, Carmelita começou a sentir o que se pode chamar de “os primeiros sinais” do orixá em sua vida: “Eu sentia coisas… Sentia algo querendo me pegar, mas eu queria era ir para rua brincar”.
Ainda aos sete anos caboquinha teve o seu santo feito por sua avó, mesmo a contragosto do seu pai que tinha medo de essa não ser a vontade da filha e a mesma ficar presa a tamanha obrigação. “Na infância, para falar a verdade, eu já estava na macumba. Mas nunca deixei de brincar, nunca deixei de fazer as coisas. Minha avó, fez o meu santo com sete anos de idade. Ela me deu um cargo para que quando ela falecesse eu seria a dona do candomblé dela. Meu pai não queria, mas eu quis. Gostei da coisa”, conta. Carmelita, não somente participava das festas no terreiro avó, como fazia questão de ajudar. Foi na rotina das atividades da casa que aprendeu muito do que hoje sabe e ensina: Sempre ajudei nas festas. Ia para a feira de São Joaquim comprar as coisas. As roupas mandavam costurar com uma costureira na Liberdade. As comidas quem fazia era minha mãe. Eu também aprendi tudo”.
Aos noves anos, prematuramente, Carmelita começou a trabalhar. Dava aulas de reforço escolar. Pouco tempo depois, a casa onde residia com os pais na rua Pinheiro do Amaral já estava apinhada de alunos. Alguns até mais velhos que a professora. Posteriormente, no mesmo logradouro, Caboquinha fundou a escola Santo Antônio de Jesus. “Dava aula na minha escola, que era registrada. Durou muitos anos. Tem pessoas até mais velhas que eu que foram meus alunos. Também fui professora substituta no Zulmira Torres. Na escola Cruzeiro do Sul, na Sete Portas, eu também dei muita aula”, rememora. Durante muito tempo, já formada em Contabilidade, a ialorixá trabalhou também como gerente da antiga loja Mesbla.
CABOCLO – Foi ainda criança, apesar de já iniciada na vida espiritual, que Mãe Caboquinha recebeu pela primeira vez o caboclo Pedra Preta. “Comecei a receber o caboclo com dez anos, mas ainda não dava sessão. Apenas acompanhava minha avó. Menos de um ano depois, eu comecei a dar sessão”, explica. Foi no giro do caboclo Pedra Presta que Carmelita começou a ganhar dinheiro através do seu dom espiritual. Quando mais tarde, recebeu o deká e se tornou mãe-de-santo, já tinha muitos clientes oriundos das sessões. “Ganhava dinheiro… Botava um prato na mesa com cinco cruzeiros e na hora que ia recolher via que o prato estava cheio. Pedra Preta significa muita coisa. Já me tirou de muitas doenças. Eu caio, ele me levanta. Se hoje eu não tiver o que comer de manhã, a noite eu tenho. Ele me dá”, revela.
A IYÁ – Caboquinha assumiu o comando do terreiro antes mesmo de receber o deká das mãos da ialorixá Maria de Lourdes Soares, a Maria de Catendê. Dona Amália já estava idosa e não tinha mais condições de tomar as rédeas das coisas da casa. “Minha avó tem 35 anos de morta. Morreu com 115 anos. Eu assumi antes mesmo dela morrer. Nunca pensei em ser mãe de santo. Pensava em ser ekedy. Minha primeira filha de santo fiz quando tinha 20 anos. Botei no quarto, fizemos as limpezas e metemos a mão. O principal ensinamento que minha avó me deixou foi de não ensinar a ninguém “o pulo de pular trás” . O pulo do gato… Isso não posso soltar para ninguém”, ressalta. Ao longo desses anos à frente do Ilê Axé Raízes de Oyá Balé foram 25 filhos de santo feitos. Teve até a história de um estudante que chegou até ela para tomar aulas de matemática e se tornou filho da casa: “Luciano, estudava no Central e entrou aqui para tomar banca. Ele gostava do candomblé. Começou a vir para as festas, fez o santo e hoje é pai de santo lá em Juazeiro”.
O BAIRRO – Há mais de 50 anos à frente de uma dos mais antigos terreiros da região, Mãe Caboquinha lembra da época em que as casas de candomblé do Nordeste eram, em grande parte, de palha. “Aqui mesmo já foi de palha. Quando chovia desmanchava tudo. Os quartinhos eram de taipa. Eu descia para as festas com candeeiro na mão. Ia para casa de Santinha, para casa de Mãe Juraci, Dona Alice, Mãe Lellinha… ”, lembra. A iyá se diz “da antiguidade”, critica o desrespeito às tradições da religião, que segundo ela, não é reverenciada como manda os costumes, sobretudo pelo próprio povo de santo: “Antigamente tinha respeito. Hoje nem se respeita mais o dia do seu anjo de guarda. Está se fazendo do candomblé um comércio e antigamente era uma religião. Fazem festa para o povo e para o santo não se dá nada. Só se vê roupa, comida e bebida. Tem gente que só vai para candomblé para comer e beber. Tem vezes que, se a comida sair antes, quando o santo estiver na sala todo mundo já comeu, já bebeu e já foi embora”. E continua: “Você chegava numa casa de candomblé antigamente e para falar com o orixá você tinha que tirar o sapato, abaixar a cabeça… Hoje em dia, não. Tem gente que fica até com celular na mão. Não dá nem atenção ao orixá que está na sala”.
Carmelita reconhece a questão do preconceito contra as religiões de matriz africana, principalmente por parte das igrejas evangélicas. Entretanto, ela ressalta que sempre viveu em harmonia com a vizinhança, e que inclusive não são poucos os cristãos que vêm até a sua casa trocar um dedo de prosa. Certa vez ao tentar proteger um meliante das redondezas, filho de uma pessoa da casa, Caboquinha testemunhou uma situação inusitada: “A polícia entrou uma vez aqui para pegar um homem que entrou aqui no meio de uma festa, uma feijoada de Ogum. A mãe dele era daqui e ele entrou pedindo socorro. Então, eu tive que dar o socorro. Abri a porta do quarto do santo e mandei ele entrar. Os policiais entraram com aquelas botas, pisando em meu lençol. Vasculharam tudo procurando o homem. Ofereci comida e guaraná para eles. De repente um veio saindo aqui e deu santo! Recebeu um caboclo. Eu aí levei ele para o quartinho, botei roupa, ele dançou e tudo. E os outros só olhando… Ficaram sem graça. Daí em diante, toda vez que eu dava candomblé a viatura passavam aqui, paravam, conversavam… (risos)”.
OYÁ – E Iansã? Qual o significado de Oyá na vida da sacerdotisa? Ela responde: “Oyá significa muita coisa. É a rainha. Ela é um espiríto que, esteja ela onde estiver, eu me deito para tomar a benção. Oyá é minha mãe. Enquanto eu existir, eu vou lutar. Mesmo em cima de uma cama, enquanto existir Deus no ceú e Oyá na terra, eu não vou padecer. Eu levanto”. Eparrei, Caboquinha!!!