Que o Nordeste de Amaralina é um dos berços do samba junino não é mais novidade, assim como também é sabido pelos moradores do bairro que o Nordeste também é a terra de Mãe Chica. Não por coincidência, a ialorixá teve seu nome cantado pela turma do samba-reggae: “Eu fui convidado para passar o São João/ Na casa da tia Chica foi aquela animação/O forró tava animado/ Tinha fogueira, foguete e balão/Tia, eu não posso porque eu estou em um sambão/Mas que sambão é esse? / É um sambão muito gostoso/ Lá tem de tudo, tem um reggae maravilhoso/Ai, ai, ai,ai lá tem de tudo tia…/ Tem um reggae maravilhoso…”
A história de vida de Francisca Cardeal de Miranda tem ingredientes de novela. Nasceu no Engelho da Federação. Ainda pequena perdeu contato com a mãe. Foi criada pelo pai e pelas madrastas. “Meu pai era pedreiro, carpinteiro, marceneiro… De todas as profissões ele sabia um pouco. Ele tinha três mulheres e mantinha as três uma perto da outra”, conta dona Chica. A infância foi “sofrida e bastante perturbada”, como ela mesmo costuma falar. Ainda adolescente, aos 14 anos, devido aos maus tratos ao qual era vítima dentro de casa, decidiu fugir. Nessa época morava com o pai e uma das madrastas em São Caetano. A fuga é narrada pela própria Francisca: “Fugi para dentro dos matos. Fiquei uma noite dentro de uma ramagem de maracujá. Quando foi de manhã cedo, antes do sal sair, eu peguei a trouxa de roupa e me mandei. Vim parar aqui na Vasco da Gama, na Vila Madalena”. Na rua, sozinha e literalmente “sem pai nem mãe”, a jovem resolveu pedir ajuda. Precisava de um lugar onde pudesse encostar a cabeça e dormir. Bateu em uma “casa de família” e se ofereceu como doméstica. “Inventei que vim do interior. Joguei uma história e a mulher comeu a gaiva. A casa era ali, onde hoje existe um supermercado. Era uma casa de candomblé da nação Jeje. O dono da casa era delegado da Vila América”.
Jovem, no esplendor da adolescência, Chica acabou despertando a cobiça do filho da patroa. Desde essa época com personalidade forte, apesar da pouca idade, Chica não titubeou e pediu as contas: “Quando foi um dia, acordei com ele me alisando. De manhã cedo falei com a patroa, ela não acreditou, ele desmentiu. Eu aí sai dessa casa. Fui para o Rio Vermelho. Arranjei um trabalho no parque Cruz Aguiar. Arrumei namorado, me perdi e vim parar na Santa Cruz, na avenida Manoel das Virgens”. E daqui da região do Nordeste de Amaralina não mais saiu. “Quando eu vim morar aqui na Santa Cruz, tudo era mato. Construí quatro casas aqui. Tudo de madeira que tinha por aqui. O comércio aqui era todo no Rio Vermelho. Para pegar ônibus tinha que ir para o Devoto”, recorda.
Na ocasião que chegou pelas bandas da Santa Cruz, Francisca estava com 16 anos. Trabalhava como doméstica. Passava a semana toda no emprego e dormia em casa nos finais de semana. Foi quando apareceu grávida. O companheiro alegou que o filho não era dele e acabaram se desentendendo de forma definitiva. Durante a gravidez apareceu uma outra pessoa em sua vida, disposto a cuidar dela e da criança. Com apenas oito meses de vida o bebê veio a óbito. Para piorar, o comportamento possessivo e ciumento do “marido” azedou de vez a relação. O fim do relacionamento foi tumultuado, como ela mesmo relata: “Ele era muito ciumento. Não deixava eu conversar com ninguém. Eu era uma menina bonita…. Nunca fui histérica para o lado de homem. Gostava muito de passear, de ir à praia. Gostava de andar sozinha. Até o dia em que ele pegou uma faca para me matar. Comecei a gritar e sai na rua correndo com ele atrás de mim”. Separada, a jovem arrumou um trabalho na Pituba e por lá ficou. Tempo depois, resolveu se casar. “Apareceu um outro filho de Jesus, eu aí me casei. Vivi muito tempo com ele até que nos desligamos. Foram dois ajuntamentos e um casamento”, explica.
Há cerca de cinquenta anos residindo na rua Patrão, número 37, no Vale das Pedrinhas, Tia Chica conta que quando por ali chegou era tudo mato. Um terreno grande que foi invadido por ela e pelos demais que ali chegaram. Posteriormente, apareceu o dono e ela teve que pagar pelo lote. Lá estabelecida, começou a lavar roupa para famílias mais abastadas da Pituba, Amaralina e Rio Vermelho. Lavou roupa durante doze anos e somente parou quando apareceu em sua vida o acarajé.
A BAIANA DE ACARAJÉ – Dona Chica costuma dizer que aprendeu a fazer acarajé olhando uma vizinha que já comercializava os famosos quitutes em um tabuleiro no bairro da Pituba. “Eu lavava roupa de ganho, daí quando não estava fazendo nada ia para casa de dona Lourdes olhar ela a bater a massa, fazer o abará, fritar o peixe, fazer o bolinho… Olhava por olhar…”. Em janeiro de 1975, próximo à festa do Bonfim, a então lavadeira decidiu que iria montar um tabuleiro para vender o acarajé na referida lavagem. Entretanto, ainda precisava aprender a enrolar o abará. Foi aí que recorreu a uma outra vizinha: “Uma moça chamada Eliana me ensinou a enrolar o abará e botar os temperos. Fui vender na lavagem do Bomfim e pedi a ela que me ensinasse. Na época ela me cobrou mil-réis. Comprei a mercadoria. Passei o feijão, na época era na mão, e fui vender”. O sucesso de vendas encorajou a jovem baiana a se aventurar também no carnaval, que na época era realizado em três dias: “A experiência foi boa. Vendi acarajé, abara, bolinho de estudante e cocada. Daí resolvi a montar o ponto fixo, em Ondina, e lá estou até hoje. Acordava cedo, botava o feijão de molho, lavava e passava o feijão, botava os meninos para passar. Fazia o abará, separava a massa do acarajé, fazia os bolinhos, a cocada, o peixe frito a passarinha e lá vai. Criei meus filhos com acarajé. Tudo que tenho foi através do acarajé. Já teve cliente que virou filho de santo!”. Lá se vão 44 anos e uma vasta clientela.
RELIGIÃO – Os chamados “primeiros sinais” se manifestaram logo cedo na vida de Francisca. Seu pai tomava conta de uma roça de candomblé no Engenho Velho. Era uma espécie de zelador dessa roça. Fazia todos os tipos de serviço. Como devoção aos caboclos, todo ano, no dois de julho, arriava um jerimum (abóbora). “Ele fazia o agdá, arrumava as coisas direitinho e mandava eu ir botar. Até que uma vez, quando eu desci para arriar, eu vi um homem. Voltei e disse a ele. Ele insistiu que não tinha homem nenhum. Quando eu desci, e cheguei no cajueiro, eu arriei e senti aquela presença estranha. Eu aí gritei e subi. No que eu fui subindo eu caí e senti uma pessoa me pegar. Estava meio acordada, meio dormindo. Acordei e comecei a chorar e disse que não mais iria botar a oferenda dele”, relembra Chica.
Todavia, pode-se dizer, que foi através do caboclo Beno Roxo, que a vida espiritual de Chica foi iniciada como ela mesmo explana: “ Um belo dia inventaram de dar uma festa para Sultão das Matas lá na minha casa. O caboclo da minha madrasta pegou ela e me abraçou. E aí acabou me pegando também. Fui parar no meio do mato. Quando acordei estava toda empolada”. Tempos depois, quando Chica já era casada, uma de suas irmãs caiu doente. Desesperado, seu pai então fez uma promessa: Se ela ficasse boa, todo ano no aniversário dela, ele daria um caruru. A jovem se reestabeleceu e promessa era cumprida todo ano.
Depois que o patriarca faleceu a obrigação deveria ser assumida por sua irmã ficar dando, que acabou não levando para frente. Foi quando Chica resolveu ela mesmo tomar às frentes da promessa feita por seu pai: “Inventei dar esse caruru todo ano. Eu dava o caruru com dois, três galos. Era o caboclo quem vinha e matava os galos. Lascava os galos no dente. O caboclo era o Cana Verde. Beno Roxo só fez iniciar. Meu caboclo é o Cana Verde. Meu caboclo tirava de mim, da boca dos meus filhos, para fazer caridade para os outros. Cana Verde subiu por uma ironia. Conversava pouco, não bebia, não fumava e só gostava das coisas dele no mato. Eu tenho medo cobra até no filme”. Depois disso sua vida mudou. A futura ialorixá começou então a dar sessão de caboclo, mas não demorou para o orixá, no seu caso, Iansã, começar a lhe cobrar o que era devido: “Passado algum tempo, fui num candomblé aqui em cima, no Sítio Caruano, e botaram a pipoca em minha mão. Foi aí que o orixá começou a manifestar em mim. Ia para a casa da finada Zulmerinda, também no Sítio Caruano. Iansã então me cobrou obrigação. Fiz minha obrigação aqui em casa mesmo com Mãe Bernadete, lá de Coutos”. Passados 14 anos da feitura do santo, Chica recebeu o deká das mãos do o pai Augusto Cesar em Itinga. “A casa já estava aberta, pois eu fazia a sessão de caboclo. Depois que registrei como Ilê Axé Oya Jabeleji. Quando eu iniciei esse lado queria somente cuidar do que é meu. Não queria cuidar dos outros. Mas acabou sendo o contrário do que pensei. Hoje digo que tudo valeu a pena. Tenho meu canto para encostar minha cabeça e passar o sol de meio dia. Não me falta nada, graças a deus. Sou feliz”, confidencia a Iyá.
CANDOMBLÉS DO BAIRRO – Com a autoridade de umas das mais antigas e respeitadas sacerdotisa do bairro, Mãe Chica lembra de alguns dos candomblés que frequentou no bairro e também não deixa de criticar o que classifica como alguns dos aspectos negativos nos terreiros atuais: “Ia na casa de Antonio Mangarueira ali na rua da Lagoa, em Amaralina. Ia apreciar. Ia na casa da finada Santinha. Tinha Moises, aqui em cima na Chapada. Zulmerinda, mãe de Rosinha. João Luis, Mãe Alice…. Ia somente apreciar. Não tinha vontade de entrar no santo. Antigamente era mais sério. A falta de respeito me revolta. Do meu portão para dentro exijo respeito. No meu candomblé, por exemplo, não gosto de dar bebida”.
POMBA-GIRA – A pomba gira Labarêda é um capítulo à parte na vida da ialorixá. A entidade começou a se manifestar em sua vida numa simples visita à Feira de São Joaquim. Lá se deparou com uma trempe de ferro. Chica então pegou uma frigideira e botou na trempe. Olhou no canto e viu uma pedra. A pedra, segundo ela, tinha o formato de uma mulher jogando um leque. Pegou a pedra e botou na frigideira, em cima da trempe. Perguntou o preço. O rapaz lhe disse que desse quanto quisesse. Levou a pedra, a frigideira e a trempe. Assentou essa pedra com tijolo e a trempe. Seu filho de sete anos foi quem quem cortou a galinha para a Padilha. Arrumou tudo direitinho e deixou ali. “Depois disso a pomba gira me pegou. Apareceu na minha porta de madrugada. Um rapaz aqui da rua vinha passando de madrugada e viu ela sentada aqui na porta com a perna cruzada e fumando cigarro. Ele aí disse que pensou era eu. Quando olhou para trás ela não estava mais. No outro dia ele me perguntou: “Chica, o que você estava fazendo sentada quatro e tanta da manhã aí na porta? ” Eu aí respondi: “Eu? Eu não fumo!”.
IANSÃ – “Iansã significa muita coisa. É uma senhora guerreira que me dá coragem e forças para viver. Sou pai e mãe da casa. Tive oito filhos e criei sete”. De Iansã, a rainha do trovão e das tempestades, Mãe Chica herdou o temperamento explosivo. Não leva desaforos para casa. O gênio forte lhe rendeu o apelido de “mulher da saia rasgada”. Um episódio contado por ela justifica a fama: “Pisou no meu calo, acabou… Eu enfrentava qualquer coisa. Não levava desaforo. Brigava mesmo. Tinha uma cidadã que tomava uns goros e implicava comigo. Uma certa vez desci para pegar água na fonte e ela veio para cima de mim. Tomei o balde de agua dela e joguei no chão. Passei uma rasteira e ela caiu. Ela aí subiu e pegou um pedaço de pau. Eu fui e peguei uma faca. Quando ela rumou o pau, eu meti a faca nela, mas não matei não”. Porém, essa mesma senhora do pavio curto, tem uma relação de respeito e carinho pela comunidade que ela viu crescer. “Quando eu vim morar aqui se contava as casas de dedo. Tudo isso aqui era horta. Vi todo mundo crescer. Respeito todo mundo, dos grandes aos pequenos”. E o preconceito? “Não dou espaço. Se falarem algo eu digo: Siga sua vida e deixe a minha. Se vierem falar encontram barraco”. E quem é doido de encarar? Êparrei, Mãe Chica!