Em um certa vez, como já era de costume, a ialorixá seguiu com seu marido, o mestre de capoeira, Evandro e um cliente rumo ao Parque São Bartolomeu, local onde costuma arriar suas oferendas. Iria despachar um ebó feito naquele dia. Chegando lá, ao colocar “as coisas” os três foram surpreendidos por um homem com um pano no rosto e uma arma na mão, que tão logo os avistou, anunciou o assalto. Com a arma apontada contra os rapazes, o assaltante ordenou que os mesmos deitassem de bruços. A ialorixá assistia a tudo imóvel. Olhou para o céu e perguntou se tinha chegado a sua hora. Num impulso que fez lembrar Xangô, o rei da justiça, do trovão e do fogo, e seu orixá de cabeça, a sacerdotisa rapidamente abaixou, pegou uma pedra e arremessou contra o rosto do meliante, que acabou desequilibrando-se e caindo com o rosto lavado de sangue. Os dois homens assistiram a tudo passivamente. “Ainda queria tomar a arma do ladrão, que estava ali estirado, e dar dois tiros nele, mas na hora me puxaram e fomos embora”, relembra. Dirigiram-se até a delegacia de São Caetano afim de registrar a queixa. No dia seguinte, estampava uma manchete policial de um dos jornais de grande circulação da capital: “Mãe-de-santo apedreja ladrão no Parque São Bartolomeu”. Poucos dias depois ficou sabendo, através de alguns alunos do grupo de capoeira, que o gatuno acabou morrendo após se envolver em mais uma confusão. Tratava-se de um perigoso e conhecido assaltante, conforme relatou a polícia. “Por mim, agora ele já está morto mesmo…”. Essa é Mãe Helena. Filha de Xangô. Voluntariosa e enérgica, altiva e guerreira. Como toda boa filha de Sàngó.
Maria Helena Cordeiro Santos nasceu e cresceu no bairro de Cosme de Farias. Sua mãe era lavadeira e seu pai, que morava em Feira de Santana, fabricava cavaquinho. Boa parte de sua infância foi de sofrimento. Não somente pelas dificuldades, mas, sobretudo, por problemas espirituais, o chamado “primeiros sinais”, que no seu caso, se manifestou logo cedo. “Nunca pude brincar por conta de problemas espirituais. Eu não entendia a seita do candomblé. Ninguém da minha família nunca tinha sido do candomblé. Minha vida era ficar num terreno baldio chorando. Eu via muitos vultos na minha frente. Eu ficava com medo porque não sabia o que era. Certa vez estava brincando de se esconder e de repente vi uma de minhas irmãs se transformar em uma escrava”, conta Helena. Sua mãe peregrinou por vários consultórios médicos, sempre sem sucesso. Ninguém desvendava a real causa dos problemas da filha.
Cansada e já desesperada em virtude do martírio da filha, Dona Valdelice, mãe de Helena, resolveu levar a filha na casa de um famoso pai de santo do bairro onde moravam, Pai Badu, que posteriormente, viria a ser o seu pai-de-santo. Chegando lá começou a se sentir mal. Ficou com medo e foi embora. “Depois as coisas começaram a piorar. Eu comecei a cair. Quando tinha trovoada eu só faltava morrer. Fora as vozes que eu ouvia. Eu caia, me levavam para o hospital e lá eu ficava dois, três dias. Eu ia almoçar, e ouvia uma voz dizendo: “Tire a mão do prato e corra”. Eu largava o prato e corria. Depois voltava para casa chorando. Muitas vezes eu ia para o colégio, ali na sete portas, a voz dizia: “Solte aí e se jogue debaixo da roda do carro”. Eu soltava e quando ia me jogar, sentia algo me puxando”, lembra a iyá. Helena relutava em voltar ao terreiro e sua angústia persistia. Foi quando, num certo dia, sem mais nem menos, ela voltou à casa de Pai Badu. “Do nada, sozinha fui parar na casa dele. Era uma festa de Oxóssi. Lá, de repente, eu cai e minhas vistas escureceram. Quando acordei já estava pronta. Meu pai de santo então me disse: “A partir de hoje você tem que me tomar a benção porque eu sou seu pai”. Ele aí me explicou tudo e disse que tudo daria certo dali em diante. Tudo era coisa do orixá que queria ser feito. Fiquei um ano recolhida lá. Cinco meses sem conhecer ninguém. Minha vida mudou da água para o vinho. Eu não tinha nada e hoje tenho tudo. Dou valor ao meu orixá. Passei então a ser uma criança normal. Brincava de roda, de peão, de gude. Foi no candomblé que encontrei a minha paz”, expõe a sacerdotisa.
Santo feito e a vida de Helena seguia seu curso normal. Estudou na escola PAX, na Baixa dos Sapateiros. Posteriormente, trabalhou numa loja de calçados nesse mesmo bairro. Foi na juventude, através do namorado, que se tornaria marido, que a então iaô conheceu uma outra paixão da sua vida: a dança. Mestre Evandro já fazia espetáculos, onde mesclava apresentações do grupo de capoeira “Bahia, Bahia” com exibições de dança afro, e resolveu então levar a jovem para tomar aulas de dança no SESC. Lá, tão logo iniciou os ensaios, começou a fazer parte da equipe do famoso bailarino Raimundo Bispo dos Santos, o Mestre King, um dos pioneiros da dança afro na Bahia e no Brasil. “Dancei com Mestre King durante 8 anos. Comecei a fazer show folclórico no Solar do Unhão. Me vestia de baiana”. Foi também através da dança que Helena de Xangô conheceu o mundo (Adiante, através do ofício de ialorixá, também viajaria pelos quatro cantos do mundo). Um episódio curioso acontecido no palco, durante uma apresentação, ilustra como duas das paixões da vida Helena, o candomblé e a dança, sempre andaram em harmonia, uma ao lado da outra: “Nunca rodei dançando, mas já vi casos. A gente fazia aquela dança folclórica representando a saída de iaôs. Eu era a mãe de santo na encenação, mas era só fingindo. Foi quando, uma vez, na arena do SESC, o orixá acabou pegando uma das meninas. A menina virou mesmo, embolou e caiu na plateia. A gente aí jogou o pano, botou para dentro, despachamos o santo e dissemos que tudo fazia parte do show. Mas foi o orixá da menina mesmo. Na época eu nem tinha ainda tomado deká”.
A IALORIXÁ – Mãe Helena chegou ao Nordeste de Amaralina no início dos anos 80. Os parentes de seu marido já moravam aqui no Nordeste. Foi quando o casal resolveu então comprar o terreno da rua João Carlos Cavalcanti, no Alto da Santa Cruz. “Isso aqui tudo era mato. Muito pé de dendê. Era tudo muito diferente. Era tudo barro. Não tinha luz”, lembra. Nessa época, Pai Badu já aconselhava à sua filha-de-santo a abrir o terreiro para cuidar das coisas do santo. Contudo, não era essa a intenção de Helena que relutava em aceitar o destino que fora traçado pelo orixá e destinado a ela: “Eu não tinha caída para esse negócio de mãe de santo. Nunca quis ser mãe de santo. Nunca passou em minha mente. Mas não teve jeito. Fiz o barracão com a intenção apenas de trazer meu orixá e dar comida. Mas a gente pensa uma coisa e o orixá quer outra. A ficha não caiu até hoje. Eu seguia o que meu pai de santo falava. Fui doutrinada assim. Ele conversou comigo que eu precisava tomar deká para dar início à minha casa de candomblé. Eu chorava e dizia que não queria…”. O deká lhe fora entregue em 1985 e o barracão foi construído em apenas 30 dias. O destino, talvez sob a intervenção do pai Xangô, mas uma vez intercedeu incisivamente em sua jornada. Como ela mesmo relata: “Fiz esse barracão ganhando no bicho. Fico até emocionada. Todo dia eu jogava no bicho. Eu tinha a intuição aí jogava e ganhava. Meu barracão foi feito no período de um mês”. Assim surgiu o Ilê Obá Orun. Registrado Quarenta e seis anos após a feitura do santo e trinta e três, desde que se tornou ialorixá, Mãe Helenda de Xangô vê o salto como totalmente positivo: “Valeu a pena… De verdade…Eu prosperei bastante. Tenho filhos de santo até na Europa. Sempre viajo. Já fiz trabalho dentro de hospital na Itália”.
TROVEZEIRO – Em dia com as obrigações do orixá e com as atividades do Ilê Obá Orun já a todo vapor, era hora de atender às solicitações do caboclo, que já reinvidicava à Helena o início das sessões. “Meu caboclo disse que ou eu dava sessão ou eu morria”, relata. Todavia, tinha um problema: Helena não sabia o nome do seu caboclo. “Na época que eu fiz o santo, meu pai de santo nunca chegou para mim para dizer qual era o meu caboclo. Quando resolvi a começar a dar giro de caboclo aqui eu ainda não sabia nem que era o meu caboclo. Hoje, a pessoa faz santo e na mesma hora fica sabendo de tudo. Chamei meu marido e minha irmã e fomos no Parque São Bartolomeu. Levei um jerimum e pedi que no dia da sessão o caboclo se apresentasse. No dia da sessão comecei a rezar, o caboclo me pegou e deu o nome dele. Era Trovezeiro. Comecei a dar sessão de 15 em 15 dias. Foi pela dor mesmo.
CANDOMBLÉS DO BAIRRO – Tão logo aqui chegou e abriu seu Ilê, Mãe Helena começou a frequentar os terreiros do bairro, principalmente os de Mãe Dulce e o de Mãe Juraci. Os candomblés de Pai José Maria, Mãe Alice e Pai João Luís também são lembrados por ela. Do último, em especial, lembra da festa de Baraketu: “Era uma festança. Era um candomblé muito bonito”. Helena gosta de ressaltar a questão do respeito dentro da religião, o que para ela, não vem acontecendo da forma que deveria: “Os candomblés antigos eram “candomblé”. Hoje todo mundo é pai de santo, às vezes, nem fez o santo. Antigamente era uma coisa muito respeitada. As pessoas atualmente botam o candomblé para baixo. É uma religião que exige respeito. Hoje virou tudo um comércio. Não se tem mais aquela paciência para arriar as coisas para o orixá e cumprir o resguardo. Eu fui pela dor. Hoje, ninguém entra mais pela dor, não. É difícil”. A ialorixá ressalta também a sua relação sempre tranquila com a comunidade, que segundo ela, nunca a discriminou: “Minha relação com a comunidade é ótima. Pessoal vem para as festas, comem, bebem… Teve até um caso de uma pessoa que reclamava do meu candomblé. Da zoada. E hoje é ekedy da minha casa”.
E quem é Helena de Xangô? “Sou uma pessoa tranquila. Guerreira. Pensamento positivo. Adoro ajudar as pessoas, mas não gosto de ser feita de besta. Essa é a Mãe Helena de Xangô”. Kaô Kabecilê!