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Quem tem medo da cultura do cancelamento?

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Por Alma Preta

Respondendo à pergunta: eu tenho medo do cancelamento, mas lanço um olhar curioso sobre esse fenômeno. Entendo o seu efeito nocivo e devastador, mas quem de fato não consegue reagir a esses efeitos? A cantora Anitta foi cancelada várias vezes e continua trabalhando, promovendo lançamentos e novos projetos. A influenciadora Gabriela Pugliesi foi muito criticada, perdeu contratos, mas mantem o estilo de vida. Então, o que seria mesmo o cancelamento?
 

Ninguém está livre de passar pelo tribunal da internet, ser julgado e condenado sem direito de defesa. Em certo momento tens amigos, seguidores, uma boa relação com pessoas, mas, propositalmente ou não, falas algo que não é bem visto. Não é preciso ser algo criminoso, fazer apologia a crimes, ou algo irresponsável, às vezes, basta que alguém entenda ou cometer um erro.
 

Uma pessoa começa a reclamar disso na internet. Essa crítica é impulsionada porque várias pessoas usam as suas redes sociais para marcar posição e reclamar também. Nessa onda, alguns desafetos ou haters aproveitam e amplificam. Há também quem se aproveite e minta a respeito do cancelado para ganhar likes nas redes. Daí começa um movimento em cadeia que ninguém tem noção de como pode parar. Os xingamentos são efeitos mais visíveis, mas pode passar para ameaças de morte, perda de emprego, de contratos, etc.
 

O tempo pode passar, podes te arrepender, verdadeiramente aprender e mudar com a situação. Ainda assim, alguém vai lembrar disso e apontar aquela situação. É isto. Cancelado. Acabou! Acabou? Nem tanto. Há como reagir…
 

Novos conceitos, velhos comportamentos
 

À cultura do cancelamento, podemos somar mais alguns conceitos: cobrança de responsabilidade, exposed, banimento, boicote e linchamento virtual. Primeiro é preciso falar que nada disso é militância, embora muito dessas discussões surjam a partir de grupos tidos como minorias sociais: mulheres, negros, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, etc. Também não é incomum que as pessoas canceladas ou seus defensores se voltem contra algo que chamam de “politicamente correto”- um termo guarda-chuva que abriga todo tipo de questionamento e crítica que vem das minorias. Isso também é um engano.
 

O fato é que cada vez mais, as pessoas exigem coerência entre o que se fala na internet e o que se faz e fala fora dela. Então, cobrar responsabilidade pelo que se fala é cobrar coerência. O problema é que isso pode vir com a exposição de conversas particulares, de vídeos, de imagens antigas e na esteira vem o banimento, boicote e linchamento virtual.
 

As pessoas se sentem traídas, manifestam a frustração, das mais diversas formas, e exigem alguma punição para quem os traiu. Para o influenciador Spartakus Santiago, o cancelamento envolve linchamento virtual e boicote de pessoas ou empresas. Entretanto, ele ressalta que ainda não uma definição específica para o termo. “Entendendo que o cancelamento é linchamento e boicote, acredito que o boicote pode ser sim uma forma de penalizar atitudes irresponsáveis. Consumir é dar poder a alguém, logo precisamos saber que valores estamos apoiando com nossas ações. Entretanto, discordo totalmente do linchamento, independente da situação. Fazer ameaças de morte e proferir discurso de ódio na internet não resolve absolutamente nada, ou pelo menos, não resolve de uma forma construtiva”, diz.
 

“Existem vários casos de pessoas que após linchamentos ficaram com grandes traumas emocionais ou até se suicidaram. Ao invés de um ataque massivo feito por um tribunal da internet, muitas vezes baseado em fake news, eu acredito que a penalidade deve ser dada por uma instituição legal, proporcional ao erro e após um julgamento justo. Ao invés de fazermos justiça com as próprias mãos, devemos cobrar que as instituições façam a lei ser cumprida”, acrescenta o influenciador, que defende o fim da cultura do cancelamento.

Assim como eu, Spartakus também acredita que há grupos que são impactados de maneira diferente pelo cancelamento. Os impactos e ataques às pessoas negras são mais violentos. “Já existe uma indisposição e antipatia natural por pessoas negras, que por causa do racismo são percebidas como agressivas, vitimistas, preguiçosas. É um ódio inconsciente presente não só nos brancos, mas também nos negros, o que muitas vezes se expressa na forma de auto-ódio. Só que esse sentimento tem que ser reprimido, pois existe uma norma social de que odiar negros sem motivo é racismo. O deslize feito por uma pessoa negra se torna esse motivo que racistas esperavam para despejar todo o ódio reprimido, e que se soma com a decepção dos próprios negros que se unem nesse ataque a partir de uma necessidade de se diferenciar do infrator (até como forma de não serem violentados também). Além disso, a violência sobre o corpo negro é naturalizada desde a colonização, fazendo com que o linchamento seja apenas uma versão virtual do tronco”, analisa o influencer.

Spartakus, que também é publicitário, reitera que pessoas negras já são boicotadas naturalmente pelo racismo, por isso são menos consumidas no mercado, na academia, na cultura ou nas redes sociais, e que o boicote causado pelo cancelamento só amplia essa desigualdade. “É bom entender também que pessoas brancas são mais humanizadas, por isso seus erros são vistos como mais aceitáveis. Algo que se reflete não só na absolvição de brancos no judiciário e encarceramento em massa de negros, mas também no perdão mais rápido de pessoas brancas canceladas virtualmente. Para completar, negros geralmente já têm a saúde mental debilitada e ocupam lugar de vulnerabilidade social, enquanto brancos têm acesso a terapia e podem até ser donos das empresas que trabalham, não correndo o risco de serem demitidos ao serem cancelados, por exemplo”, afirma.

Há uns anos o publicitário, natural da Bahia, possui um canal no YouTube. Nessa jornada, ele já conheceu a experiência de ser cancelado e disso ficaram algumas cicatrizes. “Dos linchamentos, ficaram vários gatilhos emocionais, o medo que qualquer crítica seja o sinal de um novo cancelamento a caminho, o receio de expressar ideias polêmicas ou impopulares (mesmo que sejam necessárias), a sensação de estar sendo constantemente julgado e rejeitado por todos, mesmo que eu tenha cada vez mais pessoas apoiando meu trabalho e tudo isso tenha acontecido há muito tempo atrás. Mas ficou também muito aprendizado. Os dois linchamentos que vivi me fizeram repensar meus objetivos na internet, aprender a ser menos ingênuo, repensar minha estratégia de comunicação online e hoje conseguir criar conteúdo de forma mais segura e saudável. Descobri que sempre dá para aprender com nossos erros e voltar mais forte”, pontua Spartakus.

Passadores de pano

Agora, chegamos ao BBB deste ano. Nesta terça-feira (23) a cantora Karol Conká pode ser eliminada com a maior rejeição do programa, superando o participante Nego Di, que saiu há uma semana com 98,76% dos votos. O comediante relatou que o filho parou de ir à escola e a família foi ameaçada. Outros participantes passam pela mesma situação. O filho da cantora Karol Conká, familiares do cantor Projota e da psicóloga Lumena Aleluia também relataram ameaças e mensagem de ódio. Toda a família deve ser punida pelas atitudes dos participantes no programa?

(Leia aqui sobre as ameaças a familiares de participantes do BBB)

Aqui, menciono um outro termo muito usado: “o passador de pano”… Eu não concordo com as atitudes dos participantes no programa, vejo muito erro neles, lamento muito pelas situações impostas ao Lucas Penteado e a ele, me solidarizo. Mas também torço para que os participantes saiam, entendam que erraram, percebam a necessidade de mudar e verdadeiramente mudem. O cancelamento não vai ensinar nada a eles, ver a família sofrer também não.

É sempre mais fácil apontar o dedo para o erro dos outros. Ainda assim, o meu compromisso é com a transformação da sociedade. Não com a destruição de quem erra. Sei que corro o risco de ser cancelada por ser passadora de pano. Mas sempre pondero que sou falha. Erro muito e não vou roubar a humanidade quem também erra e pode mudar. Quanto aos canceladores, no início do texto comento que ninguém está livre do tribunal na internet. Um dia podes ser cancelado também. Quem vai estar ao teu lado e te defender?

 O povo preto quer narrar suas históriasVivemos em um mundo de disputa. Nossa sociedade tem profundas marcas das desigualdades que foram desenhadas ao longo da história. Na atualidade parece que há espaço para debate, a tão falada representatividade está sobre a mesa.
Mas o povo preto quer mais. Queremos narrar nossas próprias histórias. Queremos ter direito de fala não somente quando essa é concedida. Somos múltiplos, somos muitos e plurais. A ótica de ser preto no Brasil se revela como um espectro, tamanha a diversidade dos povos ancestrais que nos originaram, e a variedade de experiências que podemos ter e ser. Pertencer. O que nos conecta é pele.Apoie o Alma Preta e nos ajude a continuar contando todas essas histórias.Vamos fazer jornalismo na raça!
Redação NES
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